QUANTO PESA O PESOJairo L. Corso “Logo quiseram ir em terra todos para edificar uma cidade: e os primeiros seis que saíram para ver o lugar onde se podia fazer mataram-nos as onças bravas. Nem por isso se deixou de edificar ainda que cada dia as onças matavam homens. Prouve a Nosso Senhor castigar a nossa cobiça e pecados, que soldados comumente fazem: permitiu vir tanta fome ao arraial que não davam a comer a cada um, cada dia, senão seis onças de pão. E, porque a gente por esta causa, com a fraqueza, não podia trabalhar, era muito castigada dos oficiais da ordem da guerra, porque lhes davam com paus, e assim morriam cada dia 4 ou 5. Ainda que não deixou Nosso Senhor a estes, que castigavam aos outros, sem castigo, porque vieram os gentios um dia de Corpus Christi e mataram 40 dos mais nobres e esforçados”. Este é um fragmento de uma carta que um português chamado Antônio Rodrigues escreveu de São Vicente para seus irmãos em Coimbra, no último dia de maio de 1553. Nela Antônio Rodrigues relata que, partindo de Sevilha, veio ao Brasil e foi até o Peru entrando pelo rio da Prata, juntamente com mais 1800 homens. Poucos retornaram. Como pode ser lido neste pequeno trecho Antônio diz que cada um, cada dia, comia não mais que seis onças de pão. E aí, caro leitor, eu lhe pergunto o que seriam estas seis onças de pão. Seriam pãezinhos com o formato de oncinhas como aqueles que nossas vovós do interior faziam ou seria a ração mínima diária para uma pessoa sobreviver? A resposta é um tanto quanto óbvia. Naquela época não seriam pãezinhos em forma de oncinhas, pombinhas ou cobrinhas, com olhinhos de feijão. Seriam, outrossim, uma mistura seca e dura de farinha e água cozidas. Se quanto ao tipo de pão já não restam mais dúvidas, o quê dizer da quantidade? Seis onças? Quanto representaria isso hoje? Dirá alguém mais apressado que são aproximadamente quatro “cacetinhos[i]” de 50 gramas. Mas como, pergunto, pesava-se 50 g. se o sistema métrico decimal apareceu mais de duzentos anos depois, na França, e foi introduzido no Brasil por d. Pedro na década de 60 do século XIX? DESTRINCHANDO OS PESOS ANTIGOS É simples, dava-se ao vivente, ou seria sobrevivente (?), um pouco menos que um marco ou meio arrátel ou ainda aproximadamente sessenta oitavas daquela mistura que chamavam de pão. Mas você não sabe o que é um arrátel ou um marco ou uma oitava? Nem mesmo quantos gramas ou quilos representam no SI (Systeme International d'Unites)? É importante que todo colecionador de moedas saiba as equivalências dos pesos antigos e dos modernos. É importante porque todas as moedas portuguesas e, conseqüentemente, as aqui cunhadas e as por aqui mandadas circular emanavam de leis, decretos, alvarás, cartas régias, ordenações e outros documentos onde constavam os respectivos pesos em onças, oitavas e grãos. Outras vezes dizem os documentos que de um marco de ouro ou prata produzir-se-iam xis moedas, com sobra de ípsilon oitavas ou grãos. Veja que uma Ordenação de 10 de junho de 1550 mandou fabricar São Vicentes de ouro de 22 1/8 quilates, valendo um mil reais, e meios São Vicentes, valendo quinhentos reais; esta ordenação ainda dizia que do peso de cada marco de ouro deveriam ser produzidas trinta moedas de São Vicente, pesando cada uma 2 oitavas 9 grãos e 3/5, e que do mesmo peso de cada marco deveriam ser produzidas sessenta peças de meio São Vicente, pesando cada peça uma oitava 4 grãos e 4/5. O homem, desde muito antes da nossa era tem enfrentado as questões colocadas pela medição. A existência de pesos e medidas uniformes como as existentes atualmente, é de grande importância em nível econômico. É fácil imaginar o caos em que se transformariam as trocas comerciais entre países, se cada um adotasse um sistema de medidas próprio. A Metrologia (do grego “metron”, medida e “logos”, ciência), é a Ciência da Medida, e tem como primordial meta garantir o rigor das medições. No reinado de d. Afonso III, o Bolonhês (1248 – 1279), uma lei de 26 de dezembro de 1253, dava a equivalência de 11,5 onças para o arrátel e, sob d. João II o arrátel passou a valer 2 marcos, ou 14 onças. No ano de 1352, os moradores de alguns povoados “portucalenses” queixaram-se à corte de Lisboa, por se sentirem lesadas quer no pagamento dos direitos reais, quer nas rendas que pagavam a particulares (fidalgos e clérigos). A confusão nos padrões de pesos e medidas era tamanha que d. Pedro I (1357 – 1367) tentou impor um padrão único de medidas para todo o território português, decretando que os pesos sólidos tivessem como base de aferição as medidas de Santarém, e os líquidos as utilizadas em Lisboa. Posteriormente, d. Afonso V (1438 – 1481), impôs a todo o reino os padrões de três cidades apenas: Lisboa, Porto e Santarém. Embora houvesse diminuído, a confusão ainda imperava e no reinado de d. João II (1481 – 1495), com o desenvolvimento das trocas comerciais com o resto da Europa, foi adotada uma nova medida, mais comum, como padrão de peso – o marco de Colônia – um padrão que deveria ser feito em ferro forjado e serviria para pesar “ouro, prata e outras coisas”. A maior parte das antigas medidas de peso e de capacidade foi um legado árabe. Na altura da formação de Portugal (1128), o padrão de peso utilizado era o arrátel, do árabe al-ratl, que era um padrão moldado em ferro fundido ou em granito. Este padrão variou de acordo com os interesses, assim como todos os outros, pesando o equivalente de 353 até 459 gramas. Na época do “descobrimento”, a unidade mais utilizada na Casa da Índia para pesar as especiarias era a arroba que, através de uma Ordenação (Manuelina de 1499) passou a valer 32 arráteis. Esta mesma ordenação determinava que todas as medidas devessem obedecer a padrões de cobre que ficariam conservados na Câmara Municipal de Lisboa e que este padrão seria baseado no marco, de bronze, constituído por 16 peças (onças). No Século XVI, d. Sebastião mandou publicar a Lei de Almeirim. Esta lei reformulou as unidades de volume, definindo os padrões fundamentais (almude, do árabe al-mudd, para os líquidos e alqueire, do árabe al-kail, para os secos), e estabeleceu equivalências, assim como determinou a sua comparação periódica. Cerca de três séculos depois, em 1816, d. João VI decretou o uso de novos padrões de pesos e medidas – mão travessa para o comprimento, canada para o volume e libra para o peso – abolindo as diferentes medidas então praticadas para os volumes secos e líquidos. Tudo se encaminhava para a simplificação, mas ainda havia confusão. O atual sistema baseado em uma estrutura de múltiplos com prefixos gregos, e submúltiplos com prefixos latinos, decimais da unidade (quilograma, litro e metro), foi concebido por Gabriel Mouton, vigário da igreja de São Paulo em Lyon, França, em 1670. Como era necessária uma base, Mouton adotou para o metro, um comprimento de medida que seria igual ao arco de um minuto de longitude dividido decimalmente. Mas somente 120 anos depois, na altura da Revolução Francesa, esta idéia foi aprovada pela Assembléia Constituinte da França. Em Portugal, a reforma veio através de um Decreto (1852), que reformou o sistema de pesos e medidas, mais uma vez. Mas as antigas medidas estavam tão enraizadas no dia-a-dia que, a par da lei, também havia penas para quem utilizasse as antigas medidas. Assim, aquele que utilizasse as antigas medidas, ficaria sujeito a uma multa de 2 a 20 mil reis ou a pena de 3 a 15 dias de prisão. O Brasil, enquanto colônia de Portugal e, depois como Reino Unido, obedecia aos mesmos padrões oficiais utilizados em Portugal. Depois da independência houve uma tentativa de padronização do sistema de pesos e medidas então utilizados. Para a elaboração de um relatório sobre o aperfeiçoamento dos sistemas de pesos e medidas e monetário requisitado pelo ministro da Fazenda, Cândido José de Araújo Vianna, foi nomeada, por decreto de 8 de janeiro de 1833, uma comissão composta pelos deputados Cândido Baptista de Oliveira, Francisco Cordeiro da Silva Torres e Ignácio Ratton. Dentre os subsídios levados à comissão, foi sugerido o marco como padrão de massa, equivalente a 1/64 de arroba e a ½ libra troy inglesa. No que se refere à definição e confecção dos padrões, o Relatório da Comissão pretendia estabelecer um padrão de massa de fácil acesso, constante e existente na natureza. Assim a Comissão do Ministério da Fazenda desenvolveu diversas experiências de pesagens com amostras de água de chuva e da Fonte da Carioca (RJ), na temperatura e pressão médias da cidade do Rio de Janeiro à época, valendo-se das balanças e dos padrões de marco da Casa da Moeda. Com base nos resultados, foi estabelecido que 1 décimo cúbico de vara[ii] preenchido por água seria igual a 5,8007 marcos ou 26.729 grãos. Tudo muito simples... Não sem muita controvérsia e somente 40 anos depois de proclamada a independência, d. Pedro II, através do Decreto nº 1.157, de 26 de junho de 1862, substituiu em todo o Império o antigo sistema de pesos e medidas pelo sistema métrico decimal, na época chamado de sistema métrico francês. O Decreto dava um prazo de 10 anos para a substituição total, e autorizava o Imperador a mandar vir da França os padrões do sistema, assim como determinava a organização de tabelas comparativas para facilitar a conversão das medidas de um sistema para as de outro. É interessante registrar que esta lei foi emitida 13 anos antes da Convenção Internacional do Metro realizada na França em 1875, onde o Brasil, juntamente com outros 20 países, aprovaram a criação do Bureau International des Poids et Mesures. Em 18 de agosto de 1872, o Decreto nº 5.089, aprovou as instruções provisórias para a execução do Decreto nº 1.157. CURIOSIDADE Por convenção foi dado ao ouro o fator (título) de 24 quilates, assim como para a prata o fator de 12 dinheiros para cada unidade de metal puro. Então, se o ouro puro expresso em milésimos é de título 999,999 deduz-se que 999,999/24 = 41,6666250 quando expresso em decimais. Assim, o ouro de 22 quilates é igual a: 41,6666250 x 22 = 916,665750 miligramas. Este título – 916,66 – foi adotado em todas as moedas Brasileiras de 4 de agosto de 1688 até 1860, quando foi ajustado para 917 milésimos, segundo o Regulamento de 2 de março daquele ano. Ou seja, em cada grama de ouro de 22 quilates 916,665750 miligramas são de ouro puro. Para a prata, aplica-se o mesmo cálculo. Séculos depois de muita confusão e antes ainda de completar o sesquicentenário da sua implantação, parece-nos impossível que o homem tenha conseguido sobreviver a tamanhas disparidades nos seus sistemas de medidas diante da simplicidade do sistema decimal. E ainda há alguns países que teimam em não usá-lo E para que todos tenham uma idéia das equivalências dos pesos antigos usados no Brasil e seus equivalentes decimais, preparei a tabela abaixo. Tabela 1 - Equivalentes decimais de pesos antigos usados no Brasil.
Voltando ao início do texto seis onças são... Não seja tão comodista, faça a conta! REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 500 Anos de Legislação Brasileira CD-ROM. Brasília-DF: Senado Federal, 2000. Collecção das Leis do Brazil – 1808 a 1843. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional. 1839 a 1891. Gomes, Alberto. Moedas Portuguesas. Lisboa: edição do autor, 1987. Gonçalves, Cleber Baptista. Casa da Moeda do Brasil. Rio de Janeiro: Casa da Moeda do Brasil, 1989, 2ª edição. LUZ, Milton. A História dos Símbolos Nacionais. Brasília-DF: Senado Federal, Secretaria Especial de Editoração e Publicações, 1999. PROBER, Kurt. Manual de Numismática. Rio de Janeiro: 2ª edição do autor, 1945. [i] No Sul é o nome popular dado ao pãozinho de 50 g. [ii] Unidade de comprimento do antigo sistema metrológico brasileiro, que equivalia a 1,10 m. [iii] Os pesos de quilates e escrópulos não eram usados na pesagem de moedas, mas para diamantes. [iv] O vintém-de-ouro era uma medida de peso equivalente a 32ª parte de uma oitava (0,112 g). Na capitania das Minas Gerais o ouro em pó não quintado circulava como moeda pelo valor de um mil e duzentos réis a oitava; para as necessidades diárias 2¼ grãos era a medida menos complicada de obter-se, daí que 0,112 g (2¼ grãos) é igual a 37½ réis. [v] Tudo indica que seja originário do peso de um grão de cereal, provavelmente o arroz. |